04 maio 2020





Às vezes, a administração admira-se por ver bruscamente, depois de vários anos de vida tranquila, um preso que se chegou a nomear «preboste» devido à sua boa conduta começar sem tom nem som, como se estivesse possesso do Diabo, a fazer tolices, a beber, a comportar-se indisciplinadamente, a cometer até crimes capitais, tais como faltas de respeito para com os superiores, violações, assassínios, etc. Admira-se, contudo, a causa dessa explosão súbita, que jamais se esperaria de semelhante indivíduo, encontra-se talvez numa mágoa corrosiva, na saudade, numa angústia instintiva, numa necessidade de afirmar o seu «eu» humilhado deixando transbordar cegamente toda a sua raiva, até ao paroxismo, até ao furor, até ao espasmo da epilepsia. Talvez seja assim que um homem, ao acordar encerrado vivo num caixão, se encarnice a bater na tampa e retese todos os seus músculos para a arrancar. Não reflecte, não procura persuadir-se de que todos os seus esforços serão inúteis, porque a razão não tem nada a ver aqui. É ainda necessário considerar que toda a manifestação de personalidade de um forçado é tida como crime; pouco lhe importa, pois, a extensão do desastre causado por essa brusca revelação de si mesmo. Uma vez que a orgia é já por si só um risco, pode muito bem arriscar tudo por tudo, ir até ao fim, até à morte. Trata-se apenas de começar, " e de perder a cabeça, porque depois mais nada o deterá, mais nada será capaz de o conter. Portanto, melhor seria não o levar a tal extremo. Seria uma tranquilidade para todos. Sim, mas como conseguir isso?
Recordações da casa dos mortos - Fedor Dostoievski

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